O presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Ophir Cavalcante, defendeu, em entrevista concedida ao jornal Folha de Pernambuco, publicada nesta segunda-feira (14), a realização de reforma política no Brasil. Entre as mudanças necessárias, Ophir apontou o fim do financiamento público de campanhas. Para o presidente da OAB, não é justo que um “candidato conhecido de uma empresa tenha uma verba de campanha muito maior do que aquele que não é conhecido”.
Veja a íntegra da entrevista:
O presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Ophir Cavalcante, encerra no fim deste mês o seu mandato. Cavalcante esteve à frente do órgão durante um período com acontecimentos marcantes na história política brasileira como o julgamento do Mensalão, a primeira eleição com a Lei da Ficha Limpa em vigor e a instalação da Comissão da Verdade. Ele reconhece que foram passos importantes, dos quais a OAB procurou participar da melhor maneira possível, lutando para defender não apenas os advogados, mas todos os cidadãos brasileiros. O presidente vê a reforma política como o próximo passo necessário e aponta o financiamento privado das campanhas como um dos grandes problemas do processo eleitoral brasileiro. Para Cavalcanti, o lema deve ser: "um homem, um voto". "Uma empresa não é um homem, é uma ficção jurídica e, portanto, não pode interferir no processo", afirmou.
P- A OAB é conhecida por ir além da defesa dos interesses dos advogados e fazer uma defesa da democracia e da cidadania como um todo. Qual o papel da OAB nessa defesa do direito?
R- Historicamente, a Ordem dos Advogados do Brasil lutou pela redemocratização do País. Lutou contra a ditadura militar, lutou pelas Diretas Já; lutou pelo afastamento do presidente Collor, pelo Impeachment. Enfim, a Ordem sempre esteve engajada nas grandes causas da democracia em nosso País. O objetivo do advogado e, sobretudo, da sua entidade de classe, é sempre defender a liberdade. A liberdade em todos os segmentos, nas suas mais variadas facetas. Liberdade de expressão, liberdade de imprensa, liberdade do cidadão de ir e vir... E por quê? Porque nós entendemos que depois da vida, esse é o bem mais importante que o ser humano tem. E essa é uma característica dos advogados brasileiros que hoje ainda permanece ao se lutar contra o estado policial, ao se lutar pela moralidade pública, pela ética na política. Hoje nós temos um outro tipo de luta.
P- Porque uma entidade de classe passou a ter essa incumbência?
R- Por uma vocação. A vocação da advocacia pela defesa da liberdade, defesa da democracia. E isso não vem de hoje, isso vem desde a Revolução Francesa até aqui. E o advogado brasileiro introjetou toda essa filosofia, toda essa lógica de atuação. E isso tem uma repercussão boa também para a classe, para a advocacia de um modo geral. A partir do momento em que se abraçam lutas que estão além do exercício da profissão, ou de um técnico a serviço de uma casa, de um lado de um cliente ou de outro, e que tem um fundamento maior que é de buscar a liberdade, isso tem um retorno para a profissão, ela se torna mais importante, ela se torna mais acreditada pela sociedade. E a nossa credibilidade e respeitabilidade também estão ligadas a essa luta que fazemos diariamente por um mundo mais justo. Tenho certeza de que este sempre foi historicamente e vai continuar sendo papel da Ordem dos Advogados do Brasil. Sem nunca deixar de defender o próprio advogado, como o defensor, como instrumento de transformação e de luta contra as arbitrariedades.
P- Então, embora alguns não consigam perceber, a liberdade de advocacia interfere de modo direto na sociedade em geral?
R- O advogado precisa ter sua liberdade, sua independência funcional respeitada. É aquilo que nós chamamos de prerrogativas profissionais, que buscamos sempre defender, que muitas vezes o cidadão não compreende o que significa. Por que lutar para que o advogado tenha alguns direitos de liberdade e independência? Porque isso tem um reflexo direto na defesa do cidadão. Imagine se um advogado tiver medo de defender o seu cliente. O cliente dele vai ser uma presa fácil de um estado policialesco ou de arbitrariedades que possam ser cometidas e que não encontram guarita no direito. Por isso os dois principais papéis, de defesa da sociedade e de defesa da advocacia, estão umbilicalmente ligados já que a vocação do advogado é de defender as liberdades, a democracia.
P- Um dos temas nos quais a OAB se faz muito presente é a defesa da ética na política. Recentemente tivemos o julgamento de um caso de grande simbolismo no combate à impunidade na política, que foi o Mensalão. Como o senhor avalia esse caso?
R- É um processo que tem um simbolismo muito forte. É o Estado dizendo para os agentes públicos, ou aqueles que eram agentes públicos naquele momento e que cometeram deslizes, que a lei tem que ser igual para todos. Esse é a grande lição que fica como uma consequência desse julgamento. A lei tem que ser igual para o mais humilde cidadão e também, na sua rigidez, ser aplicada ao mais elevado integrante do escalão da República. Portanto, esse julgamento tem esse simbolismo muito forte e também é uma forma do Judiciário reafirmar que ele é um Poder tão importante quanto o Legislativo e o Executivo. Não é o fato do Legislativo e do Executivo serem eleitos, que o voto, que é muito importante, que é a legitimidade da democracia, seja um salvo conduto para desvios éticos, desvios de comportamento que causam prejuízos para o erário. Portanto, a Ordem não abre mão dessa luta porque isso é uma luta da sociedade, da democracia em nosso país.
P- Muito se falou na espetacularização da Justiça nesse julgamento, até como resultado da forte pressão da opinião pública. O senhor acredita que essa pressão tenha interferido no resultado final do processo?
R- Dentro de uma democracia, do país livre que graças a Deus somos hoje, da liberdade de expressão, liberdade de Imprensa, é fundamental que a sociedade e a imprensa atuem dentro de uma legítima pressão em torno do Estado, seja no Executivo, no Legislativo e no Judiciário. Vemos isso em todas as áreas. Essa demanda da sociedade brasileira por mais justiça, para acabar com a impunidade, para se combater a corrupção, certamente exerce uma influência nos julgamentos de um modo geral. Mas não é determinante, porque se não houve elementos probatórios suficientes, nenhum juiz vai condenar só por conta dessa pressão legítima, que é feita pela sociedade. A pressão pública, portanto, não foi determinante para que o Supremo chegasse ao veredicto que chegou. Poderia ter chegado a esse veredicto ou não ter chegado a esse veredicto independentemente da pressão popular.
P- Além do Mensalão, tivemos também recentemente a Lei da Ficha que foi outra conquista importante. Mas o que ainda precisa mudar na política brasileira e como a OAB participa dessa pretensa mudança?
R- Reforma política. O próximo passo é a reforma política. A Ficha Limpa inaugurou um momento importante, um início de uma reforma política no nosso País, onde a sociedade através de um projeto de iniciativa popular, com quase cinco milhões de assinaturas, disse que queria uma política menos contaminada pela influência dos caixas-dois, pela influência de todos os "ismos": os mandonismos, os nepotismos, os coronelismos... Todos os "ismos" que sempre foram muito nefastos para o cidadão, porque lhe retiravam recursos para a saúde, para a segurança, para a educação e desviavam para os bolsos de alguns poucos. E para o futuro, é necessário que haja um outro passo, que é o da reforma política. Nós já identificamos quais são as causas: caixa-dois. Dez entre dez políticos dizem que isso acontece. O Mensalão revelou a existência disso. Várias outras situações revelam isso.
P- O que fazer para combater esse problema?
R- A Ordem defende uma reforma política, e entre os aspectos que precisam ser reformados, um diz respeito ao financiamento privado, financiamento de empresas para campanhas eleitorais. E a Ordem fez mais: a Ordem propôs uma Ação Direta de Inconstitucionalidade contra a lei eleitoral federal que permite que empresas financiem campanhas eleitorais. Não é justo, desequilibra o pleito eleitoral, quebra o princípio da isonomia dos candidatos, que alguém que seja conhecido de uma empresa tenha uma verba de campanha muito maior do que aquele que não é conhecido dessa empresa ou que não vai defender lobby de determinados segmentos. O princípio adotado deve ser: um homem, um voto. Uma empresa não é um homem, é uma ficção jurídica e não pode interferir nesse processo.
P- Dilma Roussef (PT) concluiu seus dois primeiros anos de mandato. Como o senhor avalia esse período inicial?
R- Dilma foi eleita com uma margem expressiva de votos. É um reflexo da vontade do povo. Ela está começando um governo que tem procurado agir de forma reativa às denúncias de corrupção. É claro que gostaríamos que esta ação fosse preventiva. Gostaríamos que ela exigisse a Ficha Limpa também dos outros cargos do Executivo Federal. Mas ela está procurando acertar. Ainda não encontrou o caminho, mas nós, brasileiros, queremos que ela encontre. Encontre também o caminho de não nos onerar com mais impostos e extinguir as antigas práticas eleitorais negativas.
P- A presidenta, que é uma ex-presa política, também oficializou a criação da Comissão da Verdade e a abertura dos arquivos da ditadura. O que isso traz de positivo para o País?
R- Conhecer a nossa história. É isso que a Comissão nos oferece. E é fundamental o acesso a isso. Porque o povo precisa conhecer a memória do País, e só se conhece a memória com o acesso também ao passado recente. Conhecer, saber a repercussão que os fatos tiveram na vida das pessoas, para não repetir essa conduta que foi tão nefasta para a democracia e aprender com os erros.
P- O senhor está encerrando seu mandato na OAB no final desse mês. Como avalia esse período de três anos em que permaneceu à frente da Ordem?
R- Foi um mandato de muitas lutas. Destaco três delas, de fundamental importância para toda a sociedade. A primeira é a Ficha Limpa, da qual a OAB participou ativamente, atuando junto à Câmara e ao Senado para defender esse instrumento tão importante para a democracia brasileira. A segunda foi a luta para manter os poderes do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). A Justiça brasileira só se afirma ao garantir a manutenção de um órgão com poderes para corrigir os poucos desvios éticos. Ter um órgão externo de fiscalização quebra o paradigma de que na Justiça tudo se resolve internamente. Tivemos alguma resistência corporativista com relação ao CNJ, em especial de entidades de classe dos magistrados e alguns Tribunais de Justiça. Mas não abrimos mão do CNJ e a Ordem lutou para que isso – a retirada de poderes do órgão, esvaziando seu sentido - não acontecesse. A Justiça fica mais forte com o CNJ. E os magistrados sérios sabem que não têm nada a temer. A terceira questão é a luta pela constitucionalização do Exame de Ordem. Isso é importante para a sociedade em geral porque o advogado institui a defesa do cidadão. E para defender o cidadão bem, é preciso uma advocacia forte e com formação adequada.
P- Que conselho o senhor deixa para o próximo presidente da OAB?
R- Que nunca deixe a Ordem ficar a reboque da política partidária ou de grupos de interesse privado. Só assim manteremos o respeito que temos hoje.