O direito ao acesso à Justiça e a ausência de padronização no Judiciário

19/05/2020

 

O direito fundamental ao acesso à Justiça e a ausência de padronização do Poder Judiciário

A Advocacia, apesar da longevidade histórica do seu exercício, é uma das profissões mais dinâmicas dentre os ofícios liberais, o que se afirma em razão da complexidade das relações humanas e da evolução das soluções postas pelo ordenamento jurídico aos conflitos intersubjetivos, sobretudo em um período de intensa produção normativa para fazer frente aos efeitos da pandemia da COVID-19 – verdadeiro contexto transformacional da importância do Advogado e da Advogada na sociedade.

Como qualquer período de rápidas modificações impostas por crises, diversas dificuldades operacionais surgem com a mudança da legislação muitas vezes construída sobre arrimo frágil e mal calculado, carecendo de um planejamento ponderado que permitisse que o quadro legal nacional estampe verdadeiramente o espírito da Constituição e responda – de modo satisfatório – aos anseios democráticos da população.

Nesse contexto, o Direito Fundamental ao acesso à justiça (consagrado pelo art. 5º, XXXV, da Constituição Federal) encontra obstáculos de difícil transposição em razão das necessárias medidas de isolamento social, que restringem as atividades presenciais do Poder Judiciário, impondo ao jurisdicionados e seus respectivos representantes uma abrupta inserção em plataformas virtuais e remotas, o que se afigura um grande desafio em um país de proporções continentais e marcado por desigualdades socioeconômicas profundas.

A Resolução n° 313/2020, do Conselho Nacional de Justiça, e suas alterações subsequentes (Resoluções n° 314/2020 e 318/2020), suspendeu todo e qualquer atendimento presencial a partes, advogados e interessados; devendo ser realizado remotamente pelos meios tecnológicos disponíveis e vedada a realização de atos processuais presenciais.

O tênue equilíbrio entre o princípio da ininterruptibilidade da jurisdição e o essencial combate à propagação do novo coronavírus (COVID-19) em território nacional é, certamente, missão que reclama dos Presidentes dos Tribunais Superiores, Tribunais de Justiça, Cortes Regionais Laborais e Eleitorais e Justiça Federal um estudo aprofundado e cauteloso de expedientes tecnológicos para a realização de audiências, sessões colegiadas, sustentações orais, perícias, comunicações processuais e demais atos que necessitem da participação direta das partes e dos seus Advogados e Advogadas.

Nessa linha de raciocínio, os profissionais enfrentam há anos a pluralidade de plataformas processuais eletrônicas. Ainda hoje, no Estado do Rio Grande do Norte, é possível que um mesmo profissional tenha que manejar o PJE 2.1 e o E-SAJ, do Tribunal de Justiça/ o PJE e o Sistema Creta, da Justiça Federal; o PJE JT 2.5.4, do TRT21; e o PJE-Zonas, do TRE; isso sem contar as diversas ferramentas utilizadas pelos órgãos administrativos dentro da estrutura judiciária ou a ela correlata.

Pois bem, os mais de quatorze mil Advogados e Advogadas ativos na Secção do Rio Grande do Norte da Ordem dos Advogados do Brasil agora enfrentam um novo desafio: realizar a representação dos seus constituintes em audiências e sessões por intermédio de plataformas e softwares distintos de Tribunal para Tribunal, sem poder contar com a utilização dos prédios públicos e seus recursos para a instrução processual.

Ainda que o CNJ tenha agido corretamente ao prescrever que é “vedada a atribuição de responsabilidade aos advogados e procuradores em providenciarem o comparecimento de partes e testemunhas a qualquer localidade fora de prédios oficiais do Poder Judiciário para participação em atos virtuais[1], o que se vê, na prática forense, é uma tentativa – quebrando-se a paridade de armas – de os Tribunais e Magistrados em dar continuidade ao andamento processual sem a observância da sobredita ressalva, sendo certo que somente é possível a realização de audiências de instrução, com a coleta de prova oral, mediante a concordância dos patronos das partes envolvidas.

Ocorre que o Brasil não é um país homogêneo e de possibilidades uniformes. O Estado do Rio Grande do Norte, em que pesem suas incontáveis maravilhas naturais e a força e a resiliência do seu povo, padece de fortes desigualdades econômicas que atingem, inclusive, à Advocacia – o que tem potencial capacidade de romper com o equilíbrio de forças necessário à concretização da justiça na relação processual.

Em meio a tantas incertezas, o CNJ disponibilizou aos Tribunais a plataforma CISCO WEBEX, mas facultou aos órgãos jurisdicionais a sua utilização, o que levou que cada Colegiado – dentro dos limites da sua jurisdição – optasse pelo software ou aplicativo que assim entendesse mais apropriado, aumentando o cabedal de ferramentas tecnológicas sobre as quais as partes e seu respresentantes precisam adquirir domínio.

Exemplificativamente, o Tribunal Regional do Trabalho da 21ª Região exarou o Ato nº 54/2020-GP, determinando que “as audiências telepresenciais serão realizadas exclusivamente por meio da Plataforma Google Meet”; enquanto que o Tribunal de Justiça,  mediante a Portaria Conjunta n.º 027- TJ, determina que “na hipótese de não ser possível a utilização da plataforma de vídeoconferência do CNJ, poderá ser utilizado um aplicativo de mensagens, como o WhatsApp, devendo o conciliador ou mediador ingressar em conversa de áudio e vídeo com as partes e seus advogados na data e hora designadas para a sessão de conciliação ou mediação.”

Com efeito, partes e advogados precisarão, para que seja resguardado o direito fundamental ao acesso à justiça, familiarizar-se, muito rapidamente, com as mais diversas ferramentas tecnológicas adotadas pelos Tribunais pátrios. Mas será que há no Brasil suficiente inclusão digital e acesso à conexão de internet de boa qualidade e capaz de permitir que essa revolução digital ocorra sem excluir justamente os jurisdicionados e profissionais que mais necessitam da estrutura estatal para ver os seus direitos garantidos e exercer o seu mister?

É inegável que as medidas de distanciamento social são uma realidade fática que se impõem como meio de efetivação dos direitos fundamentais à vida e à saúde. Igualmente mostra-se inexorável o caminhar do Poder Judiciário rumo à virtualização dos seus procedimentos, acompanhando a tendência da sociedade que, cada vez com mais frequência e intensidade, interage com amparo em ferramentas tecnológicas.

Todavia, em busca do mencionado equilíbrio indispensável às transformações em curso, há de se alcançar certo grau de padronização na utilização de recursos tecnológicos pelos Tribunais, facilitando a atuação dos advogados e advogadas que, por razões diversas, encontram dificuldade no domínio de tantos instrumentos advindos da dinâmica tecnologia da informação e que funcionam como anteparo e patrocinadores dos direitos dos seus constituintes, possibilitando ainda que haja comunicação e compartilhamento de informações entre as instâncias e unidades jurisdicionais de modo a aprimorar a realização dos atos não presenciais.

É ineficaz, indesejado e contraproducente tentar debrear a marcha do progresso e do desenvolvimento tecnológico. Noutro pórtico, faz-se cogente que essa evolução se dê a passos firmes e cautelosos, evitando que sejam atropelados os que não possuem ao seu alcance as mesmas perspectivas de inclusão digital, provocando ainda mais desigualdade e exclusão.

A sociedade espera que o Poder Judiciário esteja atento a essa realidade que, longe de ser uma filigrana social, desponta como maior desafio da nova rotina judiciária, em que juízes e servidores não mais interagem presencialmente com as partes e advogados. Não se pode conceber que o distanciamento social isole e marginalize os hipossuficientes, contexto em que milhões de brasileiros, lamentavelmente, estão inseridos.

Por fim, a Advocacia precisa estar vigilante para impedir que as suas prerrogativas sejam aviltadas e esquecidas. Ainda que em ambiente virtual, a Lei Federal n° 8.906/1994 (Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil) permanece vigente e atual, o que demanda união da categoria para que possamos vencer a crise provocada pela pandemia mantendo a dignidade da profissão e sem que se esqueçam que, enquanto função indispensável à administração da justiça por força constitucional, não há  progresso da função jurisdicional sem respeito a todos os advogados e advogadas do Brasil.

 

Alexander Henrique Nunes Gurgel

Diretor Tesoureiro da OAB/RN

João Victor de Hollanda Diógenes

Secretário Geral da OAB/RN

 

 


[1] Resolução n° 314/2020 do CNJ, art. 6º, §3º, parte final.

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